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Rochdale antes da cooperativa

Rochdale antes da Cooperativa: a dura realidade que moldou os Pioneiros de Rochdale. Artigo baseado no livro de John Cole.

Muito antes da fundação da cooperativa em 1844, a cidade de Rochdale já era palco de fome, revoltas, religiosidade popular, injustiças sociais e ousadas experiências culturais e políticas protagonizadas pelos trabalhadores

O que havia em Rochdale antes da cooperativa?

A história dos Pioneiros de Rochdale costuma ser contada a partir de 1844, com a famosa abertura da loja da Toad Lane. Porém, para compreender verdadeiramente o surgimento do cooperativismo moderno, é preciso olhar para trás — para as ruas, igrejas, praças e fábricas onde essa ideia foi fermentando silenciosamente ao longo de décadas.

Rochdale, no início do século XIX, era um retrato condensado das contradições da Revolução Industrial: de um lado, máquinas a vapor e novas possibilidades de produção; do outro, desigualdade brutal, instabilidade social, fome e um sistema político excludente.

Os próprios fundadores da cooperativa — tecelões, sapateiros, alfaiates — não eram apenas trabalhadores, mas também militantes, leitores, cristãos ativos, autodidatas e sobreviventes de tempos extremamente difíceis. Eles viveram revoltas, presenciaram prisões, participaram de debates, e lutaram pelo direito de existir com dignidade.

Este artigo reconstrói esse cenário anterior à cooperativa, revelando o que moldou a consciência coletiva dos Pioneiros — não como mitos, mas como pessoas reais inseridas num tempo de crise e criatividade social.

De feiras de rua a uma cidade-fábrica: o nascimento de uma nova Rochdale

No início do século XVIII, Rochdale era uma cidade mercantil com mercado regional ativo. As ruas de paralelepípedo abrigavam feiras, pequenas lojas e casas familiares. A economia girava em torno da produção manual de lã e algodão — muitas vezes feita dentro de casa, em oficinas familiares.

Mas isso mudou radicalmente com a chegada da Revolução Industrial. Entre 1770 e 1830, Rochdale transformou-se em um polo da indústria têxtil, com grandes fábricas movidas a vapor e centenas de trabalhadores. Cerca de 80% da população adulta trabalhava em teares, enquanto as crianças, a partir dos 7 ou 8 anos, eram empregadas em tarefas extenuantes por salários ínfimos.

Com esse crescimento, a cidade viu surgir bairros operários densamente povoados, sem saneamento básico, com altas taxas de mortalidade infantil, tuberculose e alcoolismo. As fábricas operavam sem regulamentação — o que significava jornadas de até 14 horas, sem descanso semanal ou férias.

O custo de vida disparava em tempos de crise, especialmente o preço do pão. Como registrou um morador da época: “Ganhávamos em quatro dias o que gastávamos em dois”.

As transformações econômicas quebraram os antigos laços comunitários e mergulharam milhares de pessoas em um novo mundo marcado por disciplina fabril, anonimato urbano e desigualdade social.

Fome, revolta e repressão: os “bread riots”

A década de 1830 foi especialmente cruel em Rochdale. Os salários dos tecelões despencaram com o aumento da mecanização, e o preço dos alimentos disparou. O pão — principal base da alimentação da classe trabalhadora — tornou-se artigo de luxo. Muitas famílias sobreviviam à base de chá e batatas.

Em tempos de fome, surgiam os famigerados “bread riots” (motins do pão). Eram manifestações espontâneas, geralmente lideradas por mulheres, que marchavam até padarias e depósitos de grãos exigindo preços justos ou saqueando alimentos. Não se tratava de ideologia, mas de desespero coletivo.

Em 1812 e novamente em 1839, Rochdale foi palco desses motins, que envolveram centenas de pessoas. O Exército foi mobilizado, e prisões em massa ocorreram, mesmo quando não havia provas formais contra os manifestantes.

O governo, em vez de resolver o problema da fome, reagiu com repressão e espionagem. Informantes circulavam nas reuniões públicas, buscando identificar líderes populares. O medo se espalhava, mas também surgia uma consciência de que as soluções viriam apenas com organização coletiva — como as que mais tarde moldariam as cooperativas.

Igrejas e capelas: entre o consolo e o controle social

Na Rochdale do século XIX, a religiosidade era uma presença marcante na vida cotidiana. A cidade contava com dezenas de igrejas e capelas de diferentes denominações: anglicanos, metodistas, batistas, congregacionalistas, entre outros.

Para muitos trabalhadores, a fé era a única fonte de consolo diante da fome e da morte. As igrejas forneciam apoio espiritual, organizavam arrecadações, criavam escolas dominicais e promoviam a temperança (combate ao álcool). Elas também ensinavam valores como disciplina, honestidade, paciência e trabalho duro — virtudes que ressoariam depois na ética cooperativista.

Mas havia também uma dimensão ambígua: as igrejas funcionavam, muitas vezes, como instrumentos de controle social. A obediência aos patrões e à ordem social era pregada nos sermões. Havia distinções visíveis entre classes dentro dos templos: os assentos da frente eram reservados aos ricos, e os pobres ficavam ao fundo, em pé.

No entanto, nem todas as congregações se limitavam ao conformismo. Alguns grupos — especialmente entre os metodistas dissidentes — começaram a defender reformas sociais e dar voz aos trabalhadores em seus púlpitos. Rochdale testemunhou o surgimento de uma religiosidade popular que misturava fé, solidariedade e rebeldia.

Não por acaso, vários dos Pioneiros de Rochdale eram membros ativos de capelas independentes, o que os aproximava da leitura, do debate e de experiências comunitárias.

A vida à meia-noite: violência, bebida e medo

Durante o dia, a cidade de era tomada pelo ruído dos teares. À noite, Rochdale se transformava. A vida noturna dos bairros operários era marcada por agitação, insegurança e fuga da realidade.

Bares se tornavam refúgios para homens exaustos. A bebida era uma das únicas válvulas de escape. As tavernas ficavam lotadas, especialmente nas noites de sábado, e ali nasciam amizades, discussões políticas e também brigas violentas.

As ruas, mal iluminadas, eram palco de assaltos, perseguições e prostituição. Mulheres pobres, especialmente viúvas ou mães solteiras, viam na venda do corpo uma das poucas opções de sobrevivência. A sociedade as condenava, mas o sistema não lhes dava alternativa.

A polícia local — com patrulheiros noturnos e milícias — reprimia manifestações de rua, aglomerações suspeitas, jogos de azar e qualquer indício de insubordinação. Havia um clima constante de vigilância e medo.

Este lado sombrio da cidade raramente aparece nas narrativas heroicas, mas foi parte da vida real dos Pioneiros. Eles circulavam por esses ambientes e compreenderam que a transformação só viria se fosse possível criar espaços alternativos de convivência, educação e trabalho digno — como os que a cooperativa viria a oferecer.

O grito do voto: o cartismo em Rochdale

Em meados do século XIX, o sistema político britânico excluía a maior parte da população. Apenas os homens proprietários de terras podiam votar. Em resposta, nasceu o movimento cartista (Chartism), que exigia reformas democráticas como o voto universal masculino, o fim do voto censitário e eleições regulares.

Rochdale tornou-se um foco importante do cartismo no norte da Inglaterra. Reuniões públicas lotavam praças e salões. As lideranças cartistas — muitas delas operários autodidatas — eram altamente organizadas, usavam panfletos, jornais e petições.

Em 1839, o parlamento rejeitou a primeira petição cartista com mais de um milhão de assinaturas. A frustração foi tão grande que eclodiram revoltas em várias cidades, e em Rochdale, houve confrontos entre trabalhadores e autoridades. As casas de líderes políticos foram invadidas pela polícia, e vários cartistas foram presos.

Muitos dos Pioneiros estavam nesse meio. Eles entendiam que a cooperação não era apenas uma alternativa econômica, mas uma forma de afirmar direitos, dignidade e autonomia. O cartismo ensinou táticas organizativas, disciplina, uso da palavra pública e resistência legal — elementos essenciais para fundar uma cooperativa.

Educação e cultura: o Athenæum dos trabalhadores

Se as noites de sábado eram agitadas, as de segunda a sexta, muitos operários dedicavam ao estudo. Em 1839, foi fundado em Rochdale o Athenæum, uma instituição operária de educação e cultura. Inspirado pelos clubes filosóficos de Manchester e Liverpool, o Athenæum oferecia acesso a livros, palestras, aulas e debates.

Era um espaço inclusivo, autogerido pelos próprios trabalhadores, com uma pequena taxa mensal de contribuição. O lema era claro: “autoeducação para a autossuficiência”. Debatia-se desde filosofia moral até política internacional.

Para muitos jovens, o Athenæum foi o primeiro contato com ideias novas: economia política, direitos dos trabalhadores, socialismo utópico e ciência. Era um espaço de descoberta — mas também de organização silenciosa.

Ali surgiram amizades que depois se tornariam parcerias cooperativas. Quase todos os fundadores da cooperativa de Rochdale tinham vínculo com esse ambiente, que pode ser considerado o embrião intelectual do cooperativismo moderno.

Robert Owen e os primeiros ensaios cooperativos em Rochdale

Muito antes de 1844, Rochdale já pulsava com ideias cooperativas. Isso se deve, em grande parte, à influência do reformador galês Robert Owen (1771–1858), um dos primeiros a propor soluções coletivas e humanitárias para os males da Revolução Industrial. Owen acreditava que o ambiente moldava o comportamento das pessoas — e que uma sociedade mais justa só seria possível por meio da cooperação, da educação e do bem-estar comum.

Suas ideias chegaram a Rochdale por meio de panfletos, jornais, conferencistas itinerantes e, sobretudo, das Sociedades de Racionalistas e das Associações Owenitas que floresceram na cidade entre os anos 1830 e 1840. Rochdale foi, nesse período, um dos centros mais ativos do owenismo na Inglaterra, com uma base operária altamente engajada.

Comunidades cooperativas e redes de apoio

Os owenitas locais fundaram armazéns cooperativos, onde os membros podiam adquirir alimentos, tecidos e utensílios domésticos a preços justos. Diferente dos armazéns comerciais, esses espaços eram geridos por comitês eleitos, funcionavam sem fins lucrativos e, em muitos casos, aceitavam pagamento fiado — o que futuramente se revelaria um erro recorrente.

Havia também salões de leitura, bibliotecas populares e escolas noturnas mantidas por esses grupos. Eles organizavam eventos culturais, discussões filosóficas e encontros públicos para debater os rumos da sociedade. Em alguns bairros de Rochdale, esses espaços substituíam tanto a igreja quanto o sindicato como centros de vida comunitária.

Uma característica marcante do owenismo em Rochdale era a integração entre homens e mulheres, algo bastante avançado para a época. As mulheres podiam ser membros ativos, participar de reuniões e ter voz nas decisões. Isso influenciaria diretamente a forma participativa adotada depois pela Cooperativa dos Pioneiros.

As falhas dos primeiros ensaios cooperativos

Apesar do entusiasmo, muitas das iniciativas owenitas não prosperaram financeiramente. Os armazéns quebravam por má gestão ou pela prática do crédito a prazo. Sem controle rígido de entrada e saída, os fundos se esgotavam rapidamente. Além disso, o idealismo de muitos dirigentes os levava a abrir mão de critérios econômicos básicos, acreditando que a boa vontade bastaria.

Alguns críticos diziam que o owenismo era “um sonho bonito, mas impraticável”. Os jornais conservadores da época zombavam das comunidades que faliram, e os inimigos políticos denunciavam os owenitas como subversivos e ateus. De fato, muitos deles propunham um rompimento com as religiões tradicionais e defendiam uma moral laica, baseada na razão e na utilidade social.

Ainda assim, essas falhas não foram em vão. Pelo contrário: os futuros Pioneiros de Rochdale estavam atentos e aprenderam com cada erro. Decidiram, por exemplo, não vender fiado, manter um caixa robusto, treinar os membros em contabilidade e manter registros detalhados. Os princípios owenitas de solidariedade e autogestão foram mantidos, mas incorporados com rigor administrativo.

William King: o cooperativismo da vida real

Se Robert Owen era o grande idealista, foi William King (1786–1865) quem traduziu o sonho em estratégia prática. Médico de profissão e cooperativista por convicção, King criou em 1828 o jornal The Co-operator, por meio do qual orientava, educava e inspirava grupos populares a fundarem suas próprias lojas cooperativas de consumo.

William King não buscava criar comunidades isoladas, mas sim cooperativas enraizadas na realidade urbana, geridas com bom senso, sobriedade e prudência. Sua famosa citação, publicada na edição nº 1 da revista The Co-operator, ecoava entre os trabalhadores de Rochdale:

“Todos os dias nós precisamos ir a uma loja para comprar alimentos e outros artigos — por que não poderíamos ir à nossa própria loja? Precisamos mandar nossos filhos para a escola — por que não podemos ter a nossa própria escola, onde possamos educá-los em ofícios úteis e formá-los como bons trabalhadores e jovens responsáveis? […]
Se continuarmos como fazemos agora, a cada ano tornará nossa situação mais angustiante e aproximará nossos filhos da miséria e do crime. Se nos unirmos, como tenho mostrado que podemos fazer, seja em uma sociedade ou em uma comunidade, em poucos anos teremos capital, conforto e independência.”

Em Rochdale, as ideias de King foram debatidas intensamente nos círculos owenitas e no Athenæum. Ele orientava, por exemplo, a adoção do pagamento à vista, a distribuição de sobras proporcional ao consumo e a gestão democrática — princípios que seriam adotados integralmente pelos Pioneiros em 1844.

Diferente de Owen, King acreditava que a transformação da sociedade viria pela ação de pequenas comunidades locais, organizadas em torno de lojas cooperativas autônomas. Esse princípio de autonomia local com responsabilidade coletiva seria adotado integralmente pelos Pioneiros e depois consolidado como base do modelo cooperativista moderno.

Por meio de edições acessíveis e linguagem clara, William King ensinava desde princípios morais, a elaboração de um estatuto social, até contabilidade básica. O The Co-operator funcionava como um manual de iniciação ao cooperativismo, e seus exemplares circularam entre os círculos owenitas e trabalhadores organizados de Rochdale.

King via a cooperativa como escola moral e política, onde o indivíduo aprendia a agir em nome do coletivo. Para ele, os cooperados eram antes de tudo sócios — e só depois consumidores. Essa visão, presente nas reuniões do Athenæum e nos círculos racionais de Rochdale, moldou o perfil dos 28 fundadores.

Assim, William King funcionou como um elo entre o idealismo de Robert Owen e o pragmatismo dos trabalhadores organizados. Ele ajudou a consolidar o modelo de cooperativa de consumo urbano que se tornaria referência mundial.

Da utopia à prática: o legado owenita entre os Pioneiros

A ligação entre os owenitas e os Pioneiros é direta. Muitos dos fundadores da cooperativa de 1844 eram membros ou simpatizantes das antigas sociedades racionais de Rochdale. Eles participaram de assembleias, cultivaram redes de confiança e adquiriram experiência prática sobre como organizar uma entidade coletiva.

Além disso, o próprio espírito cooperativo — a ideia de que as pessoas comuns podem criar, gerir e sustentar seus próprios empreendimentos — foi semeado pelo owenismo e regado pela orientação prática de William King.

Sem essa fase preparatória, é improvável que a loja da Toad Lane tivesse tido o mesmo sucesso. Os Pioneiros não inventaram algo do zero. Eles sintetizaram, aperfeiçoaram e profissionalizaram uma tradição de organização popular que já circulava há décadas entre os trabalhadores ingleses.

Rochdale como semente viva do cooperativismo

Quando os 28 Pioneiros de Rochdale abriram sua pequena loja na Toad Lane, em 21 de dezembro de 1844, eles não estavam inventando algo do nada. Estavam, na verdade, colhendo os frutos de décadas de sofrimento, aprendizado e organização popular.

Eles traziam consigo:

  • A indignação dos famintos que marcharam nos motins do pão.
  • A fé daqueles que buscaram nas capelas não só salvação, mas solidariedade.
  • A ousadia dos cartistas que lutaram por representação.
  • A sede de conhecimento cultivada no Athenæum.
  • E as lições, duras e valiosas, deixadas pelas experiências owenitas e pela voz firme de William King.

A cooperativa dos Pioneiros foi bem-sucedida porque concentrou o saber prático da classe trabalhadora: regras claras, autogestão, disciplina financeira, distribuição justa de resultados, e — acima de tudo — o compromisso com a educação e com o bem comum.

Mais de 180 anos depois, essa mesma essência segue viva nas cooperativas financeiras modernas, que:

  • Investem em formação de seus associados;
  • Distribuem os resultados coletivamente;
  • Fomentam a inclusão em territórios onde o sistema tradicional não chega;
  • Resgatam o protagonismo de quem nunca teve voz no sistema bancário tradicional.

Rochdale nos ensina que o cooperativismo não é apenas uma técnica de gestão, mas uma filosofia de vida baseada na confiança mútua, na resiliência coletiva e na construção de futuro a partir da adversidade.

Os nomes dos Pioneiros estão gravados na história. Mas tão importantes quanto eles foram os anônimos que os antecederam — os que tentaram e fracassaram, os que ensinaram a ler, os que doaram uma moeda para o armazém, os que mantiveram a esperança viva.

Hoje, ao liderarmos ou participarmos de cooperativas financeiras, somos herdeiros dessa longa marcha de dignidade. E, como William King dizia, cada vez que compramos algo ou buscamos um serviço, devemos nos perguntar:

“Por que não na nossa própria cooperativa?”

Porque cooperar é, ainda hoje, o ato mais transformador que podemos praticar em comunidade.

Márcio Port

presidente da Central Sicredi Sul/Sudeste

 

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