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Impenhorabilidade das quotas-partes de capital das sociedades cooperativas diante do (novo) §4º do art. 24 da Lei Cooperativista

Há pouco tempo operou-se modificação no marco regulatório do cooperativismo brasileiro cuja importância ainda não se fez repercutir adequadamente entre nós.
 
Refiro-me à inserção do §4º ao art. 24 da Lei nº 5.764, de 1971 (através da Lei 13.097, de 19-01-15, art. 140), cujos efeitos são aplicáveis a todos os ramos cooperativos, entre eles o  crédito (financeiro).
 
O dispositivo prevê que “as quotas (…) deixam de integrar o patrimônio líquido da cooperativa quando se tornar exigível, na forma prevista no estatuto social e na legislação vigente, a restituição do capital integralizado pelo associado, em razão do seu desligamento, por demissão, exclusão ou eliminação.”
 
Ao estipular que as quotas são exigíveis apenas por ocasião da desfiliação, a inovação legislativa provoca dois efeitos inequívocos, a saber:
1º) elimina de vez, na leitura a contrario sensu, a dúvida sobre ser o capital componente do patrimônio líquido enquanto o associado mantiver o vínculo associativo;
 
2º) torna indisponíveis as quotas-partes, inclusive para fins de penhora judicial em ações contra associados, uma vez que durante o vínculo associativo o capital assume caráter institucional, ou seja, é da cooperativa.
 
No primeiro caso – natureza contábil das quotas-partes de capital -, consolida-se a corrente que defende que as quotas integram o patrimônio líquido da cooperativa para todos os efeitos, especialmente para fins de apuração de limites regulamentares (nas cooperativas financeiras: Basileia, exposição por cliente/associado, imobilização etc), enquanto não se efetivar o desligamento do cooperado do quadro social da entidade.
 
Com relação à indisponibilidade das quotas durante o vínculo associativo, resta inequívoco que o cooperado tem mera expectativa de direito sobre esse valor, não podendo dele dispor senão depois de afastar-se da cooperativa (a exceção fica por conta do resgate parcial de quotas em cooperativa de crédito, em razão do disposto no art. 10 da Lei Complementar 130, de 2009).  E nada assegura que o associado possa dispor dessas quotas no futuro, pois elas poderão vir a ser utilizadas para quitar dívidas da cooperativa com terceiros, caso a entidade torne-se insolvente (lato sensu) antes do desligamento do associado (arts. 11 e 13 da Lei Cooperativista).
 
Aliás, pelos mesmos fundamentos, é vedado utilizar as quotas como garantia (caução, penhor ou cessão fiduciária) de obrigações que o associado tenha com a própria cooperativa. Nada impede, contudo, a sua retenção para compensar débitos por ocasião do desligamento do associado, como geralmente consta dos estatutos sociais das cooperativas.
 
Note-se, em reforço a esse entendimento, que a parte final do dispositivo, representada pela expressão “por demissão, exclusão ou eliminação”, é separada por vírgula da oração, combinada, “se tornar exigível a restituição do capital integralizado pelo associado em razão do seu desligamento”. Isso quer dizer que unicamente o desligamento do associado, igualmente limitado pelo parágrafo às hipóteses de demissão, exclusão e eliminação, dá a ele o direito de exigir as quotas-partes, desde que com ele (cooperado) não concorram credores da própria cooperativa.
 
E se as quotas são inexigíveis pelo próprio associado enquanto se mantiver nessa condição, elas não podem servir como bens ou direitos (ainda que futuros), na forma do art. 591 do Código de Processo Civil, passíveis de penhora judicial ou ser objeto de garantia – passíveis de expropriação, enfim – em face de obrigações que o cooperado tenha com terceiro. Do contrário, considerando que a cooperativa, agora de forma indiscutível, é a titular real desse capital enquanto o associado não se desvincular, ela (a cooperativa) seria colocada na posição de devedora ou garantidora, sem que tivesse assumido qualquer compromisso obrigacional, com evidente prejuízo à coletividade de cooperados.
 
Ademais disso, estaria prejudicando seus credores, pois reduziria a sua capacidade de pagamento (lembrando que os associados, no caso do regime de responsabilidade limitada, respondem perante os credores da sociedade até o limite das quotas-partes que subscreverem – arts. 11 e 13 da Lei Cooperativista). Não se pode cogitar de a sociedade cooperativa, na qualidade de terceira interessada (art. 499 do CPC), remir a execução (art. 651, CPC), remir o bem (art. 685-A, § 2º, CPC) ou concedê-la, ou mesmo dar aos demais associados a preferência na aquisição das cotas (art.685-A, § 4º, CPC), ou, ainda, em situação extrema, facultar-se ao credor a absurda possibilidade (em desprezo ao direito da maioria) de requerer a dissolução parcial da sociedade, forçando a saída de cooperado para “liberar” as suas quotas.
 
Por fim, apenas para que não passe em branco, é igualmente incogitável a integração compulsória de um terceiro (o credor particular de um cooperado) como sócio da sociedade cooperativa (pela transferência a ele dos direitos creditórios sobre as quotas-partes), pois, além de ofender ao princípio da livre adesão (1º dos sete postulados universais do cooperativismo), o ingresso em tal condição estaria destituído da (indispensável) afecctio societatis.
Agregue-se a relevante circunstância de a sociedade cooperativa ser entidade autogestionária por excelência, tanto assim que a Constituição Federal, no art. 5º, XVIII, veda a interferência do Estado em seu funcionamento. E mais. Impor o vínculo associativo afrontaria um dos mais relevantes fundamentos da República, que é o da livre iniciativa, consagrado no art. 1º, IV, da Carta Magna.
 
Em síntese, afirma-se ou no mínimo ganha considerável reforço a linha doutrinária que vem sustentando a impossibilidade de penhora das quotas-partes, tese esta até aqui assentada unicamente no art. 4º, IV, da Lei Cooperativista, e no art. 1.094, IV, do Código Civil.
 
Com isso, (re)abre-se a possibilidade de reverter a tendência jurisprudencial, endossada pelo Superior Tribunal de Justiça (ex.: REsp 1.278.715 – PR), que, majoritariamente, em decisões anteriores à mudança legislativa em questão, vem desconhecendo as peculiaridades do tipo societário, em afronta à Lei Cooperativista, ao Código Civil e à Constituição Federal (art. 174, §2º). Vale lembrar que à cooperativa é assegurado o direito processual (conforme REsp n°s  248.417/SP, 30.854/SP e 285.735/MG), e o dever material, de intervir (como 3ª embargante) em demandas que proponham a constrição de quotas-partes para garantir dívida de associado em particular.
 
Conclamam-se, portanto, os operadores do direito cooperativo, em especial os advogados das sociedades cooperativas, a instruírem suas teses, seus pareceres e suas decisões sobre a indisponibilidade e impenhorabilidade das quotas-partes enquanto durar o vinculo societário, levando em conta o §4º do art. 24 da Lei nº 5.764, de 1971.

Ênio Meinen

autor de Cooperativismo financeiro na década de 2020: sem filtros! (ed. Confebras, 2020 – na 2ª ed./2023) e diretor de coordenação sistêmica, sustentabilidade e relações institucionais do Sicoob.

 

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