Eduardo Suplicy: Uma vida pela Renda Básica de Cidadania
19/03/2020
Engana-se quem pensa em um Eduardo Matarazzo Suplicy curvado ou cansado. Aos 78 anos, completados em 21/6/2019, com experiência de vida e trajetó-ria invejáveis, se mostra um jovem cheio de sonhos. Economista, administrador de empresas, professor universitário e lutador de boxe, ele passou 24 anos no Senado, mas também foi deputado estadual, federal e está hoje em seu segundo mandato como vereador paulistano (veja perfil na pág. 12). Seusolhos brilham ao falar de seus projetos de Renda Mínima e de Renda Básica de Cidadania, que o tornaram conhecido em todo o Brasil e no exterior, e ao mencionar suas iniciativas em favor da economia solidária, do cooperativismo e das minorias. Emociona-se ao falar dos pais, avós e avôs que lhe marcaram a alma com sentimentos de justiça social e de construção de um mundo mais solidário. Transita pela história mundial com rara desenvoltura, citando os grandes pensadores que lutaram por justiça social, antes de Cristo e depois de Cristo, até nossos dias. Com alguns deles, como Paul Singer, cultivou grande amizade. Quase chega às lágrimas ao ler um trecho do famoso discurso “Eu tenho um sonho”, de Martin Luther King, Jr, publicado na pág. 211 de seu livro “Renda de Cidadania – A saída é pela porta” (já na 7ª edição, pela Cortez Editora). É uma obra imperdível, em especial para os que abraçam o sonho de Suplicy – a construção de um Brasil mais justo, onde todos tenham renda suficiente para viver com um mínimo de dignidade. Confira sua entrevista à EasyCoop.
Meu sonho: instituir para valer a renda básica
EasyCoop - O Sr. tem uma trajetória de vida dedicada a causas sociais. Muitos sonhos realizados. Aos 78 anos, qual ainda é seu maior sonho?
Eduardo Suplicy – Instituir para valer a Renda Básica de Cidadania no Brasil. Foi objeto da aprovação da Lei 10.835, de 2004. Foi aprovada por todos os partidos no Senado Federal em 2002 e por todos os partidos na Câmara dos Deputados em dezembro de 2003. Na época era deputado federal o atual presidente Jair Bolsonaro, que não fez qualquer objeção. Foi o presidente Lula quem, numa bela cerimônia, em 8 de janeiro de 2004, a sancionou. Diz a Lei que a renda básica de cidadania deve ser igual para todos os residentes no Brasil, não importando sua origem, raça, sexo, idade, condição civil ou socioeconômica. Todos passam a ter direito de receber uma renda que, na medida do possível, com o progresso do país, será suficiente para atender às necessidades vitais de cada pessoa. A ninguém será negada, até para os que têm mais. Obviamente, se temos mais, colaboraremos para que nós próprios e todos os demais venham a receber. Diz a Lei que ela será instituída por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados, como faz hoje o Programa Bolsa Família, que pode ser visto como um passo na direção da implantação da Renda Básica de Cidadania. Hoje (1º de outubro) saiu no Valor Econômico um artigo dos economistas Sergei Soares, Pedro Ferreira de Souza e outros pesquisadores do IPEA que explicam por que o país deve adotar um benefício universal a crianças. Sua proposta é substituir o Bolsa Família, o Salário Família e o percentual abatidodo Imposto de Renda para cada dependente até 16 anos, ou mais se estiver estudando – um benefício que é dado a pessoas com maior renda, - por umarenda básica universal para todas as pessoas até 18 anos. A Lei 10.835 diz que a Renda Básica de Cidadania será paga a todas as pessoas residentes noBrasil, homens e mulheres de qualquer idade, inclusive aos estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais. Pagar um benefício universal a crianças e adolescentes até 18 anos significa um passo importante na direção de instituir a renda básica universal para todos.
Pode alguém sair de casa se não pela porta?
EasyCoop – É uma saída pela porta, sem violência?
Suplicy – Em verdade, a proposta de garantia de uma renda para todos acompanha a história da humanidade. Quando o Sr. saiu de casa hoje, saiupela porta. É o que afirmo no meu livro “Renda de Cidadania – A saída é pela porta”. No ano 520 antes de Cristo, o mestre Confúcio, no “Livro das Explicações e Respostas”, observou que a incerteza é ainda pior do que a pobreza. Pode alguém sair de casa se não pela porta? É uma questão de bom senso se nós quisermos, efetivamente, cumprir o que diz o Artigo 3º da Constituição brasileira - “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Uma solução de bom senso quando saímos de casa pela porta (ou seja, buscamos justiça social sem violência) é instituirmos a Renda Básica de Cidadania incondicional para todos.
Justiça social vista por Aristóteles e pela Bíblia
EasyCoop – Mas sempre houve desigualdades ao longo da história...
Suplicy – Se recuarmos para o ano 350 antes de Cristo, nos depararemos com o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Em seu tratado “A Política”, diz que a política é a ciência de como alcançar o bem comum, uma vida justa para todos. Para isso, é necessária a justiça política, que precisa ser precedida da justiça distributiva, que torna mais iguais os desiguais. Se verificarmos o que está na Bíblia Sagrada, no Antigo Testamento, qual é a palavra mais citada em hebraico – 523 vezes? Disse-me o rabino Henry Sobel que é justiça social, justiça na sociedade. Está no Livro do Êxodo, nos Provérbios, no Deuteronômio e tantos outros. Não é à toa que o MST (Movimento dos Sem-Terra) abre seus encontros de formação com a leitura do Êxodo, para lembrar a luta pela terra prometida, reforma agrária, justiça na sociedade. No Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos, está escrito que eles venderam seus bens, passaram a viver em comunidade, de maneira a prover a cada um suas necessidades.
Em sua segunda carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo afirma que “todos nós devemos seguir o exemplo de Jesus que, sendo tão poderoso, resolveu sesolidarizar e viver entre os mais pobres.” Se verificarmos o que pensam os seguidores de Maomé, do Islamismo, encontraremos mensagem similarnos livros dos grandes califas que o sucederam. Omar, o segundo deles, diz que toda pessoa que detém um grande patrimônio deve destinar uma parcela para os que pouco ou nada têm. No Budismo, o Dalai Lama diz em seu livro “Uma Ética para o Novo Milênio” que, “se for para aceitar o consumo tão suntuoso dos mais ricos, nós precisamos antes assegurar a sobrevivência de toda a humanidade”.
Thomas More: ajuda é melhor que pena de morte
EasyCoop – Como o Sr. vê a contribuição de Thomas More?
Suplicy - Seguindo mais adiante na história, nos deparamos com o filósofo inglês Thomas More (1478-1535). Em 1516, escreveu “Utopia”, obra dividida em dois livros. No primeiro, há um diálogo sobre a pena de morte, que foi instituída na Inglaterra no início do século 16, mas não contribuiu para diminuir a criminalidade violenta - assaltos, roubos e assassinatos (esta é uma lição muito importante para o presidente Jair Bolsonaro saber). No diálogo, o personagem Rafael Hitlodeu (que em grego significa contador de histórias), um viajante sembleia Nacional Francesa, denominado “Justiça Agrária” (que está reproduzido em meu livro). Em 20 páginas, ele diz que a pobreza tem a ver com a civilização e a instituição da propriedade privada. A propriedade era comum entre os índios da América. Ele considerava de bom senso que uma pessoa que cultivasse a terra realizasse ali benfeitorias e pudesse usufruir do trabalho na sua propriedade. Mas era seu plano que toda a pessoa que assim o fizesse destinasse uma parcela de seu rendimento para um fundo que a todos pertenceria. E deste fundo, uma vez acumulado, se pagaria a cada pessoa tanto um capital básico quanto uma rendabásica, como um direito inalienável de todos participarem da riqueza comum da nação. Uma renda como um direito à cidadania a ninguém seriam negada.português, observa que, muito mais eficaz do que infligir esses castigos horríveis a quem não tem outra alternativa se não primeiro tornar-seum ladrão para depois ser transformado em cadáver é você assegurar sua sobrevivência. Com base nessa reflexão, um amigo de Thomas More, o espanhol Juan Luis Vives, escreveu em 1526 para o prefeito da cidade flamenga de Bruges (noroeste da Bélgica) um tratado de subvenção aos pobres, onde, pela primeira vez, propõe o direito à sobrevivência das pessoas.
Thomas Paine já citou conceito de renda básica
EasyCoop – E a contribuição de Thomas Paine?
Suplicy - Já no século 18, surgiu outro Thomas muito importante, Thomas Paine (1737-1809 - revolucionário político inglês que virou um dos pais“fundadores” dos Estados Unidos). Tornou-se amigo de um dos líderes da Revolução Americana, Benjamin Franklin, o inventor do pára-raios, que o convenceu a viver na América como contador. Paine era um arguto observador dos costumes, valores e procedimentos.
Em janeiro de 1776, escreveu um ensaio denominado “Common Sense” (Senso Comum). O presidente George Washington confidenciou a um amigo que nenhum outro livro tivera tamanha influência na mente dos americanos para lutarem por sua independência.
Seis meses depois, em 4/7/1776, 150 mil exemplares da obra, uma tiragem fantástica para a época, foram distribuídos pelas ruas da Filadélfia e em cidades das 13 colônias americanas. Foi o dia da proclamação da independência dos Estados Unidos. “Senso Comum” contrariou o bom senso para a colôniabritânica. Proclamada a independência, Paine começou a se sentir perseguido por suas ideias, consideradas ousadas e progressistas, e decidiu voltarpara a Inglaterra, sua pátria. Mas lá foi hostilizado e seus livros começaram a ser queimados, sendo responsabilizado pela perda da principal colônia inglesa.
Decidiu ir para a França e lá se engajou na luta por liberdade, igualdade e fraternidade. Três anos após a Revolução Francesa de 1789, embora estrangeiro, foi eleito Constituinte francês. E nessa posição escreveu um ensaio para a Assembleia Nacional Francesa, denominado “Justiça Agrária” (que está reproduzido em meu livro). Em 20 páginas, ele diz que a pobreza tem a ver com a civilização e a instituição da propriedade privada. A propriedade era comum entre os índios da América. Ele considerava de bom senso que uma pessoa que cultivasse a terra realizasse ali benfeitorias e pudesse usufruir do trabalho na sua propriedade. Mas era seu plano que toda a pessoa que assim o fizesse destinasse uma parcela de seu rendimento para um fundo que a todos pertenceria. E deste fundo, uma vez acumulado, se pagaria a cada pessoa tanto um capital básico quanto uma renda básica, como um direito inalienável de todos participarem da riqueza comum da nação. Uma renda como um direito à cidadania a ninguém seriam negada.
“A cada um de acordo com as suas necessidades”
EasyCoop – E qual a maior contribuição dada por Karl Marx e Friedrich Engels?
Suplicy – Karl Marx publicou em 1848, junto com Friedrich Engels, o Manifesto Comunista. E mais tarde os volumes de “O Capital”. Em 1875, escreveu a “Crítica ao Programa de Gota”, onde ele diz que, em uma sociedade mais amadurecida, os seres humanos vão se portar de tal maneira que se poderá inscrever como lema de sua bandeira 12 palavras em inglês – que o grande economista John Kenneth Galbraith, em “A Era da Incerteza”, observou que tiveram efeito ainda mais revolucionário do que os volumes de “O Capital” – “From each according to his capacity, to each according to his needs” (“De cada um, de acordo com a sua capacidade; a cada um, de acordo com as suas necessidades”). Certo dia, fazendo uma palestra para as Comunidades Eclesiais de Base, em Brasília, na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, eu fui citando dezenas de economistas, pensadores e filósofos ao longo da história que defendem a renda básica. O saudoso D. Luciano Mendes de Almeida, grande defensor dos Direitos Humanos, que presidia a conferência, me disse: ‘Eduardo, você não precisa citar Karl Marx para defender sua proposta. Ela é muito melhor defendida por São Paulo na 2ª Epístola aos Coríntios”. Daí em diante passei a citá-los juntos.
Movimento ganha força a partir do século 20
EasyCoop – Mas há mais intelectuaispensando nessa direção...
Suplicy - São muitos os outros pensadores e filósofos. No início do século 20, vários se dedicaram a análises daqueles grandes movimentos que abalaram a Europa antes da 1ª Guerra Mundial – anarquismo, socialismo, sindicalismo. Após analisar essas proposições e ideias, chega-se à conclusão de que o meu plano é exatamente esse: que cada pessoa possa obter o necessário para a sua subsistência. E daí para a frente cada um vai receber aquilo que conseguir por seu talento, esforço, capacidade, produtividade, criatividade. Mas a ninguém será negado o mínimo para a sua sobrevivência. Ao longo do século 20, dezenas de pensadores e laureados com o Prêmio Nobel de Economia – Dennis Milner, Mabel Milner, Joan Robinson, James EdwardMeade, John Maynard Keynes, George Joseph Stigler, Milton Friedman, James Tobin - passaram a defender a garantia de uma renda mínima. Alguns, primeiro, por meio de um imposto de renda negativo. Outros, depois, mais e mais, por meio de uma renda básica universal e incondicional. Entre esses, James Edward Meade (1907-1995), Prêmio Nobel de Economia. Ele escreveu uma trilogia sobre Agathotopia (em grego, um bom lugar).
Agathotopianos construíram um “bom lugar”
EasyCoop - E como James Meade descobriu Agathotopia?
Suplicy - Em “Agathotopia: The Economics of Partnership”, ele diz que, por um longo tempo, esteve em busca de Utopia. Por mais que navegasse, nãoconseguiu encontrá-la. No caminho de volta, deparou-se com Agathotopia. Lá chegando, tornou-se amigo de um economista que lhe disse: “Os agathotopianos sabem onde fica Utopia, mas não vão lhe contar porque têm uma grande diferença com os utupianos, que são seres humanos perfeitose vivem num lugar perfeito, enquanto nós agathotopianos somos seres humanos imperfeitos, que cometemos nossas bobagens e perfídias. Mas nós conseguimos construir um bom lugar. E Meade estudou então as instituições e arranjos sociais de Agathotopia e ficou persuadido de que eram as melhores que até então havia encontrado, para ao mesmo tempo atingir os objetivos que de há muito a humanidade e também os economistas tanto queriam – liberdade, no sentido de cada pessoa poder trabalhar no que deseja e gastar o que recebe naquilo que quiser; igualdade, no sentido de não haver grandes disparidades de renda e de riqueza; e eficiência, no sentido de se alcançar o maior padrão de vida possível com os recursos e as tecnologias vigentes. E quais eram as instituições? Primeiro, flexibilidade de preços e de salários para alcançar a melhor alocação de recursos e o melhor padrão de vida possível; segundo, muita interação entre capital e trabalho, entre em presários e trabalhadores, podendo os trabalhadores serem contratadospor quotas de participação nos resultados. Mas, às vezes, por causa de intempéries, golpes, guerras, revoluções e instabilidades, podem ocorrer quedas de salários e de participação nos resultados. Daí, precisa haver outro instrumento, que é, justamente, a renda básica de cidadania universal,para todos. No último capítulo dessa obra, Meade diz que o importante é caminhar firmemente na direção de conseguir aplicar esses ensinamentos. Se pretendermos instituí-los todos ao mesmo tempo, aí vem tudo o que se observou no século 20 – guerras, revoluções, golpes de estado, instabilidades políticas. O importante é caminhar naquela direção.
“Estou confiante de que meu sonho se realizará”
EasyCoop – Então, foi com base nessas teses que o Sr. começou sua luta?
Suplicy - Em 1991, quando cheguei ao Senado, apresentei um primeiro projeto de garantia de renda mínima por meio de um imposto de renda negativo. Foiaprovado pelo Senado em 16/12/1991 por todos os partidos, com três ou quatro abstenções (mas não foi adiante na Câmara). Do debate a respeito do Programa de Garantia de Renda Mínima surgiu a ideia de relacioná-lo às oportunidades de educação e de saúde. Daí vieram os programas Bolsa Escola,Bolsa Alimentação, Auxílio Gás, Cartão Alimentação etc., até que, em outubro de 2003, o presidente Lula unificou e racionalizou esses benefícios. Avançando nos estudos sobre esse tema de garantia de uma renda, eu fiquei persuadido de que, melhor ainda do que o Programa de Garantia de Renda Mínima por meio de um imposto de renda negativo, mesmo que vinculado às condições de educação e saúde, seria a renda básica incondicional. Por isso, em dezembro de 2001, apresentei o Projeto de Lei para instituir a renda básica incondicional. Foi designado relator o então senador Francelino Pereira, ex-governador de Minas Gerais. Disse-me na ocasião: “Olha Eduardo, tenho 81 anos. Quero estudar seriamente a sua proposta”. E o fez. Dei-lhemeu livro (Renda de Cidadania – A Saída é pela Porta), que então, 2002, estava na primeira edição. Ele o estudou e disse: “Eduardo, é boa ideia, mas precisa torná-la compatível com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Que tal você aceitar um parágrafo que diga que será instituída por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados?” E assim aconteceu. Aqui está a Lei que institui, a partir de 2005, a renda básica universal para todos. A abrangência será alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se os mais necessitados, como faz o Bolsa Família. Por isso, ela é uma passo na direção da renda básica universal. É a história de Agathotopia: o importante é caminhar firmemente naquela direção. Por isso, estou confiante de que meu sonho vai se realizar.
Valores herdados dos pais foram determinantes
EasyCoop – O Sr. nasceu em família abastada. Em que etapa da formação nasceu a vocação de trabalhar pelos excluídos do desenvolvimento econômico?
Suplicy – Meu pai, Paulo Cochrane Suplicy, e minha mãe, Filomena Matarazzo, eram muito católicos. Sou o 8º de 11 filhos e filhas. Eles me transmitiram valores cristãos. Morávamos numa casa muito boa, na alameda Casa Branca com a alameda Santos, diante do parque Siqueira Campos. Meu pai deixou muitos exemplos. Ele era um corretor bem-sucedido. Tinha escritório de corretagem de café, algodão e outros produtos. Como minha mãe, era irmão leigo da Ordem Terceira do Carmo e ambos integravam a Confederação das Famílias Cristãs. Ele participou da Organização do Auxílio Fraterno, que provê ajuda a pessoas carentes. Por 30 anos, foi presidente da Fundação Casa do Pequeno Trabalhador, que criava oportunidades a meninos de 10 a 15 anos para, em parte do dia, serem guardinhas de automóveis ou engraxates, e em outra parte, estudarem. Ele recebia muitas pessoas que o procuravam. Às vezes, eu ia com ele até o portal de casa e ele me dizia coisas que são preciosas para mim e toda a minha equipe. “Olha, meu filho, mais importante de qualquer ajuda que você possa dar a uma pessoa é poder ouvir a história dela”. Isso ficou gravado em mim. E aos poucos fui me dando conta dessas situações. De um lado, minha família, primos e primas com todas as facilidades e de outro...
Eu dormia diante do Parque Siqueira Campos e por vezes, à meia-noite, era acordado com gritos. Ia ver o que tinha ocorrido - alguns policiais dando cacetadas em mulheres que eram levadas ao Distrito Policial e três ou quatro dias depois estavam de volta lá, vendendo o seu corpo. Por que será? Às vezes ia passar férias em Bragança Paulista, na fazenda Boa Esperança de meus avós Andrea e Amália Cintra Ferreira Matarazzo. Jogava bola com os colonos da fazenda, tomava lanche com eles e às vezes os convidava para vir em casa. Percebia diferenças bastante grandes. Algumas dessas pessoas que comigo jogaram bola se tornaram mais tarde líderes de reivindicações de trabalhadores rurais.
As lições aprendidas nos ringues com pugilistas
EasyCoop – Como virou um campeão de boxe?
Suplicy – Na adolescência, houve outra curiosidade. Um dia estava andando com amigos na av. Paulista, do Colégio São Luiz à alameda Casa Branca. Quando cruzamos com um grupo de 15 a 20 estudantes, uma pessoa no meio deles gritou: “O que é que está olhando?”
Avançou sobre mim, rodamos no chão. Cheguei em casa ensanguentado. Pouco sabia de defesa pessoal. Aí perguntei a meu cunhado se ele não conhecia umprofessor de boxe. E ele me apresentou a Lúcio Inácio da Cruz, que havia sido campeão brasileiro de meio-pesado.
Treinei dos 15 aos 21 anos (foto), lutando duas a três vezes por semana e fazendo ginástica. Um dia o professor me chamou, disse que eu estava lutando muito bem e que poderia disputar o Campeonato Gazeta Esportiva de Boxe. Participei. E coube ao jornalista Newton Campos, que cobria boxe, registrar minha vitória na Gazeta Esportiva: “Eduardo Matarazzo Suplicy sai da lona para ganhar por nocaute”. Tive oportunidade de treinar em muitas academias com lutadores conhecidos, como Paulo de Jesus, Milton Rosa, Abrão de Souza e Eder Jofre. Estive com o Eder em 29/9. Está com 83 anos. Fizemos uma oto e lembramos episódios do passado. O boxe, que é um esporte praticado por pessoas de famílias bem mais modestas, me fez observar que no ringue éramos todos iguais. Nos bate-papos, no entanto, sentia grandes diferenças entre nós. E isso me trouxe uma consciência importante.
Conceito de renda mínima nasce com doutorado
EasyCoop – E como foi o despertar para a doutrina social?
Suplicy – Outro episódio que marcou minha formação ocorreu aos 14 anos, quando fui crismado no Colégio São Luiz (Crisma é o sacramento de confirmação na fé católica). Escolhi para padrinho de Crisma Dilson Domingos Funaro, noivo de minha irmã e então dono da fábrica de brinquedos Trol. Ele me deu de presente a história de Galileu Galilei. Li e fiquei muito impressionado com o exemplo de um homem que queria saber a verdade. Também assisti ao filme de Nicolau Copernico. Em uma cena do filme, a mulher e a filha perguntam: “por que você fica aí falando que a Terra é redonda e não é o centro do universo? Você não vê que está incomodando os poderosos, a Igreja? Quero saber a verdade. Por que você tanto quer saber a verdade?” Essas coisas mexeram muito comigo. Passei de um aluno médio a um dos melhores da classe. E comecei a ter amigos que ficavam se perguntando por que tantas diferenças sociais, o que é o socialismo, o capitalismo, o marxismo. Do São Luiz fui estudar Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas.No meio do curso, terminado o 2º ano, perguntei a meus pais se poderia participar do Festival da Juventude pela paz e Amizade em Helsinque (Finlândia) e fazer uma excursão pelos países do Leste europeu e da Europa Ocidental. Concordaram. Depois de quatro meses visitando tantos países, o Muro de Berlim, cheguei à conclusão de que era, sim, possível transformar as coisas, ter um Brasil e um mundo melhor, mas pela democracia, com liberdade. Ao concluir Administração de Empresas, em dezembro de 1964, foi trabalhar um ano com meu pai, mas continuei como diretor Cultural do Centro Acadêmico e depois presidente do Centro Acadêmico da FGV. Quando houve o golpe de março de 1964, reuni todos os estudantes e professores para debatermos o que fazer e a quem apoiar.
Decidimos em assembleia que tinha que ser respeitada a Constituição, mas nosso ponto de vista não prevaleceu. Passado um ano no escritóriodo meu pai, onde desenvolvi um setor de exportação de manufaturados, e já casado com a Marta, informei o pai que surgira um concurso paraprofessor de Economia na GV. Se eu passasse, poderia fazer mestrado e doutorado em Economia, encontrar respostas para as questões que tinha na cabeça. A resposta dele foi curta e grossa. “Olha, filho! Ser professor não vai lhe propiciar um padrão de vida com o qual você está acostumado. Mas se isso o deixar feliz, vou apoiá-lo.” Passei no concurso e já em agosto de 1966 ingressei na Michigan State University, na cidade de East Lansing, estado de Michigan (EUA). O Eduardo (Supla) tinha cinco meses. Estudamos dois anos lá. No intervalo de dois anos voltamos a São Paulo. Eu dei aulas e Marta completou o curso de Psicologia. Ao voltarmos à Michigan State University, ela fez o mestrado em Psicologia e eu completei, em junho de 1973, o doutorado em Economia. Aprendi lá o conceito de uma garantia de uma renda mínima.
Cooperativismo ajuda a elevar grau de justiça
EasyCoop – O que renda mínima tem a ver com cooperativismo e economia solidária?
Suplicy – Nós precisamos colocar em prática todos os instrumentos de política econômica e social que possam elevar o grau de justiça na sociedade.Quando foi abolida a escravidão, elevou-se o grau de justiça. Se provermos boas oportunidades de educação para todas as crianças, jovens e adultos, se provermos boa assistência à saúde, na cidade e no campo, estaremos elevando o grau de justiça. Se expandirmos as oportunidades de microcrédito, vamos também elevar o grau de justiça. E quando pessoas se reunem para organizar um processo produtivo de um serviço ou de um bem, em forma cooperativa e de economia solidária, naturalmente será de forma mais equitativa, de maior justiça, que se fará a distribuição da renda, da riqueza gerada nesta organização. Depois temos as transferências de renda, como aposentadorias, benefícios de prestação continuada, seguro-desemprego, salário família, bolsa família. Avalio que essas formas de transferência de renda poderão ser aperfeiçoadas justamente na renda básica de cidadania incondicional e universal.
Coopvapi, uma exemplo de economia solidária
EasyCoop – O mundo do trabalho está mudando. A tecnologia varre empregos, concentra renda, aumenta o fosso social. A economia solidária e o cooperativismo são saídas?
Suplicy – Com certeza. O professor Paul Singer nos deixou excelente legado. Basta olhar o prefácio dele e a minha apresentação para o livro dajornalista Mônica Dallari, lançado em 2012, que conta a história de 106 dos 160 vendedores autônomos do Parque do Ibirapuera, que se organizaramem cooperativa (a Coopvapi). Quando João Doria foi eleito, anunciou sua intenção de conceder a administração dos parques municipais à iniciativaprivada. A presidente da Coopvapi, Antonia Cileide Oliveira de Souza, me ligou preocupada: “O que vai acontecer conosco da cooperativa?” Semperder tempo, levei o livro da Mônica Dallari para o prefeito. E expliquei a ele a bonita história da cooperativa que eu havia ajudado a formar no ano 2000, quando os ambulantes temiam ser retirados do parque pela Prefeitura. Com a cooperativa, criaram uma sólida economia solidária e passarama viver, todos eles, com maior dignidade. E o prefeito João Doria aceitou meus argumentos. O trabalho da Coopvapi foi mantido.
Debate sobre Lei Paul Singer avança na Câmara
EasyCoop – A defesa da Coopvapi é apenas um exemplo de suas lutas. Em 2014, como secretário de Direitos Humanos de Fernando Haddad, o Sr. coordenou a Incubadora Pública de Empreendimentos Econômicos e Solidários; e como vereador tem o Projeto de Lei 197/2018, batizado de PL Paul Singer...
Suplicy – A incubadora foi um sucesso. Foi uma iniciativa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo em convênio coma Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários do Brasil, a Unisol, que havia criado o Projeto Ecosol-SP. Em 2017, a incubadora já havia beneficiado 1.066 pessoas, 26 grupos e redes e 187 empreendimentos em nove áreas de atuação econômica – alimentação, artesanato, construção civil, costura, estética, ecoturismo, cultura, hortas e marcenarias. Na Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, em cooperação com a Secretaria do Trabalho e outras entidades, também inauguramos no bairro do Cambuci os Centros de Direitos Humanos e Economia Solidária. A mesma cooperação pautou a parceria da Secretaria do Trabalho com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em especial das vítimas de violência ou situação de perigo. Foi pensando nessas e outras iniciativas, para desenvolver uma política municipal especialmente voltada para as cooperativas, que, como vereador, apresentei no ano passado o Projeto de Lei 197/2018, batizado de PL Paul Singer. O objetivo é formalizar um marco regulatório municipal da Economia Solidária e criar a Política e o Sistema Municipais de Economia Sodidária (SMES), instituindo o Fundo e o Conselho Municipais de Economia Solidária.O projeto é assinado também pela vereadora Juliana Cardoso (PT) e outros membros da Câmara. Tramita na Comissão de Constituição e Justiça, comrelatoria de Celso Jatene (PL). A Lei Paul Singer estabelece os princípios, diretrizes e objetivos do SMES.
“Passo a meus alunos os valores de Luther King”
EasyCoop – Que conselhos deixa aos jovens? Muitos pensam mais em acumular riquezas do que em compartilhar.Outros, sem perspectivas, em especial nas periferias, vivem o hoje...
Suplicy – Para construir uma sociedade civilizada e justa, precisamos levar em consideração aqueles valores que não sejam unicamente a busca do interesse próprio, de levar vantagem em tudo, mesmo pisoteando sobre o próximo. É claro que todos nós desejamos progredir e ficamos felizes quando há o progresso de nossos entes queridos, Claro que fico contente quando meus filhos, o Eduardo (Supla), o André (advogado) e o João (também cantor e compositor), têm sucesso. Mas eu procuro transmitir a eles e aos meus estudantes que é preciso se levar em consideração também aqueles outros valores que são próprios da história da humanidade e de nós brasileiros, como a busca da ética, da verdade, da solidariedade, da fraternidade, da justiça. São valores que estão presentes em um dos mais belos discursos da história da humanidade, I have a dream (“Eu tenho um sonho”), de Martin Luther King, Jr. Foi feito diante do Lincoln Memorial perante as 250 mil pessoas que participaram da Marcha de Washington, em 20 de agosto de 1963, contraa segregação racial nos Estados Unidos. Lincoln assinou a abolição da escravidão em 1º de janeiro de 1863, mas a segregação permaneceu. Estamos aqui, disse Luther King Jr., para rememorar esse momento tão fantástico, “esse decreto que se tornou uma grande fonte de luz para milhões de escravos negros que foram queimados nas chamas de causticante injustiça”. Em resumo, ele disse na ocasião que, 100 anos depois, a vida do negro ainda está muito mutilada.
Renda básica, mais educação e menos violência
EasyCoop – O mesmo se aplica ao Brasil?
Suplicy – O que ele disse é válido para todo o Brasil. Não é à toa que eu cito aqui Martin Luther King, Jr. Em “Where Do We Go from Here: Chaos orCommunity?”, lançado em 1967, ele expressou um pensamento que nos faz lembrar Confúcio, quando diz que a saída é pela porta. Ele afirmou: “Euagora estou convencido de que o mais simples meio provará ser o mais eficaz. A solução para a pobreza é aboli-la diretamente por meio de uma medidaagora amplamente discutida: a renda garantida.” Qual é a maior vantagem da renda básica de cidadania? Elimina-se toda a burocracia envolvida. Nãovamos ter que saber quanto cada um ganha no mercado formal ou informal.
Elimina-se qualquer sentimento de vergonha da pessoa. Ela não precisa dizer: recebo tanto, mereço tanto. Mas é do ponto de vista da dignidade e da liberdade do ser humano que nós temos a maior vantagem - seja para aquela pessoa que não tem outra alternativa para dar de comer em casa senão a devender o seu corpo no Parque da Luz (parque paulistano onde a prostituição é comum), seja para o personagem de o “Homem na Estrada”, de ManoBrown, dos Racionais MC’s, citado em meu livro. Tornei-me amigo de Mano Brown. Estive no último sábado (28/9) em show feito por ele (foto) no CapãoRedondo (zona sul da capital). O personagem, não tendo como ajudar no orçamento de casa, resolve tornar-se um “aviãozinho” da quadrilha de narcotraficantes. No dia em que houver para si e para cada membro de sua família uma renda básica suficiente para atender suas necessidades vitais, essa pessoa vai ganhar o poder de dizer “não, agora não preciso aceitar essa única alternativa que surge pela frente, mas que vai ferir minha dignidade, colocar minha saúde e minha vida em risco; agora posso aguardar um tempo; quem sabe, fazer um curso, até que surja uma oportunidade,mas de acordo com a minha vocação”.
É nesse sentido que a renda básica vai elevar o grau de dignidade e liberdade real para todos. Mais educação, menos violência. A renda básica vai propiciar melhores oportunidades de educação. São todos aqueles instrumentos que podem elevar o grau de justiça na sociedade. Esse é meu sonho.
Administrador de empresas, economista e líder de votos
Um dos políticos mais conhecidos do Brasil, Eduardo Matarazzo Suplicy cumpre um segundo mandato como vereador em São Paulo, três décadas depois de sua primeira eleição. Economista, administrador de empresas e professor universitário, nasceu em São Paulo em 21/6/1941. É filho do corretor decafé Paulo Cochrane Suplicy e Filomena Matarazzo (neta do conde Francesco Matarazzo). É formado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, onde é professor titular, e em Economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA). Entre os anos 1960 e 1970 foi professor visitante na Universidade de Stanford, também nos EUA. Ocupou ainda o cargo de editor de Economia na revista Visão. Ainda no jornalismo, colaborou com artigos para o jornal Última Hora e foi redator e analista de assuntos econômicos da Folha de S.Paulo.
A carreira política começou em 1977, quando se filiou ao MDB. Em 1978, disputou a 1ª eleição – candidato a deputado estadual, obteve 78 mil votos, elegendo-se como o segundo mais votado. Em 10/2/1980, participou da fundação do PT. E foi pelo PT que se elegeu deputado federal dois anos depois,com 83 mil votos. Suplicy foi candidato a prefeito de São Paulo em 1985, na primeira disputa para um cargo majoritário. No ano seguinte, candidatou-se a governador do Estado. Voltou a ocupar cargo público ao se eleger vereador em São Paulo em 1988, sendo o mais votado, alcançando 201.549 votos. Ao tomar posse, em 1989, foi eleito presidente da Câmara de São Paulo. A passagem pelo Legislativo paulistano foi curta, já que Suplicy se tornou oprimeiro senador do PT eleito, em 1990. E foi no Senado, no ano seguinte, que ele elaborou e divulgou um de seus principais projetos, o Programa de Garantia de Renda Mínima. Foi provado pelo Senado, mas ficou travado na Câmara, o que levou Suplicy a apresentar, em 1992, o projeto que institui a Renda Básica de Cidadania. Foi aprovado no Senado e na Câmara e virou lei
Em 1992, o então senador tentou mais uma vez chegar ao cargo de prefeito de São Paulo. Não conseguiu e continuou no Senado. Em 1998, mais uma vez mostrou-se um campeão de votos para cargos legislativos. Foi reeleito senador pelo Estado de São Paulo com 6.718.463 votos, a maior votação para o posto na história. Em 2004, conseguiu uma de suas principais vitórias como senador: o presidente Lula sancionou a lei 10.835/2004, instituindo, a critério do Poder Executivo, a Renda Básica de Cidadania. Reeleito para um terceiro mandato para o Senado, em 2006, obteve 8.986.803 votos, permanecendo no cargo até 2014. No ano seguinte, foi convidado pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, a assumir a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo, cargo que ocupou até março de 2016. Candidato a vereador nas eleições de 2016, foi eleito com 301.446 votos. E, novamente, teve a maior votação da eleição para o Legislativo paulistano.
Revista EasyCOOP